Não venho falar-vos de atentados ao pudor, violação de liberdades, atividades violentas e vexatórias sobre estudantes ou mortes resultantes de praxes, pois tratam-se, isso sim, de delitos praticados por seitas de estudantes universitários. Estes atos insultuosos para a condição humana camuflam indiscutivelmente tentativas de ascensão e afirmação social. Em suma, não são praxe académica.
Pretendo sim recordar-vos a vida estudantil da Universidade de Coimbra. É isso que interessa e que nos acrescentou valor. Todos aqueles que passaram por esta instituição de ensino superior sentiram algo especial que os marcou como indivíduos e os formou como pessoas.
Quando entrei para a faculdade de Ciências e Tecnologia, corria o ano de 1981 e com dezoito anos saí debaixo das asas controladoras e disciplinadoras dos meus pais e fui aprender a voar. O ano de caloiro custou a passar não pelas praxadelas mas por que tudo era novidade e eu não conseguia ir a todas. Um mundo novo se abriu para mim e eu tentei explorá-lo.
Recordo-me bem quando uns estudantes do 2º e 3º ano, respetivamente semi-putos e putos, nos tentaram convencer a inscrever o nosso nome e a entregar uma quantia em dinheiro para a aquisição de uma sebenta no bar das matemáticas. Nós como caloiros obedientes e inexperientes lá fomos, embora no local nos tenhamos apercebido que tudo aquilo não passava de um esquema para angariar fundos para os copos dos alunos mais antigos. Realço aqui que ninguém nos coagiu, maltratou ou ofendeu.
Brincadeiras deste tipo tinham unicamente como objetivo integrar e abrir a pestana ao pessoal, nunca ridicularizar ou diminuir o estudante. Na esmagadora maioria das vezes, se o caloiro alinhasse na coisa todos se divertiam. Era isso que interessava.
Outra situação marcante foi a aula fictícia no departamento de química, ministrada por um aluno mais antigo. A lista de bibliografia necessária à cadeira de química geral registada no quadro era enorme, com livros em todas as línguas (russo e chinês, incluídos). A falsa aula terminou com a entrada na sala do regente da cadeira, a saída do falso professor com uma despedida cordial e a nossa cara de espanto pelo sucedido.
Não conheço e nunca assisti a qualquer atividade de praxe a que o caloiro não aceitasse submeter-se. Qualquer um tinha o poder de dizer não e isso era respeitado. Mas se rejeitasse o código da praxe não o poderia seguir no futuro. A adesão era livre. E foi a partir do meu 2º ano que tudo se alterou. Abracei completamente a academia, aderi na plenitude ao código e passei a usar com muito orgulho o traje académico de Coimbra.
Os anos seguintes foram cheios de alegria, prazer e praxe. As receções aos caloiros, as latadas, as queimas das fitas, as garraiadas na Figueira da Foz, os bailes de gala, as noites no parque, as serenatas na Sé Velha, os bailes na cantina, os namoros e os copos. Paralelamente, a vida social revelou-se intensa e diversificada. Sessões de King, álcool e tabaco pelas noites dentro. Marquei, igualmente, muitas presenças em discotecas (States, Scotch e Etc, Coimbra e Lagar, Ceira) onde a excelente música dos anos 80 convidava a dançar sheik ou slow e a conhecer muita gente.
Usei insígnias pessoais, o grelo (3º ano) e as fitas azuis claras (4º ano) com muito orgulho. No 5º ano, cartola e bengala. No final deste ano, realizei juntamente com dois saudosos colegas a cerimónia do rasganço após a publicação da classificação da última cadeira. O Instituto Botânico foi o local escolhido por representar bem o nosso curso - Biologia. Foi divertido, marcante e simbólico, em suma foi inesquecível. O manguito à cabra representou a despedida da vida académica e a chegada das lágrimas da saudade. Ainda hoje o recordo.
Para ficar tudo completo, fomos fazer a nossa apresentação, na qualidade de novos doutores, ao jornal “Diário de Coimbra” que publicou nas suas páginas o acontecimento, como manda a tradição. Tudo tinha terminado. Chorei quando me apercebi disso e lamentei não ter chumbado para gozar a vida académica mais um ano.
Esperem, lembrei-me de algo incrível que se passou nesse mesmo dia. Fomos ainda notícia nos media, pois desfilámos numa passagem de modelos da loja Fetal no jardim da Sereia. Guardo comigo o recorte do jornal sobre esse acontecimento. Foi hilariante e absolutamente memorável.
Com grande regularidade continuámos a ir à queima das fitas nos anos subsequentes e ainda hoje o fazemos. Sempre participámos nos cortejos e recordamos sempre todas as peripécias, aventuras e façanhas que vivemos. A amizade ficou marcada de forma eterna. A vida estudantil foi apaixonante.
Eu não quero esquecer nada, quero manter a saudade. Amo-te muito Coimbra e sei que tu também me amas a mim.
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